O gérmen do Lirismo – A Música Oceânica de Leonardo Vichi

“Tu de saudades íntimas alagas
O mais profundo coração humano”.

Oceanic Cycle – Suíte para Piano no.1 de Leonardo Vichi

Os versos, dedicados ao mar, do poeta brasileiro Cruz e Sousa, bem poderiam referir-se à pintura íntima do mar na música do Ciclo Oceânico, a suíte para Piano no.1 de Leonardo Vichi. A evocação de episódios representativos da experiência vivida em uma jornada oceânica a bordo de um veleiro, e sua vivência diante do mar e no mar, traz ao ouvinte da música de Vichi a impressão de estar diante de um verdadeiro ciclo de poemas sonoros para piano, em que cada nota pode evocar sentidos tanto quanto as palavras em um poema lírico. Ainda assim, estamos diante de uma música que agradaria e despertaria sentimentos e pensamentos, mesmo se não soubéssemos o nome da obra ou os títulos de seus movimentos. Acima de tudo, é música da maior qualidade.

Surpreende a síntese que Leonardo Vichi faz, nesta obra, através da mescla de influências de estilos tão diferentes como o Barroco, o da música francesa do final do século XIX e início do XX, e o da música contemporânea de concerto. No entanto, isso está longe de ser apenas uma mostra de erudição do compositor: ecos de Bach, Chopin, Fauré, Debussy e Glass estão presentes não como pastiches, mas como emprego de expressões artísticas distintas, englobadas pelo estilo próprio do compositor, a fim de melhor expressão de seus subjetivismos. Nada parece gratuito ou desnecessário nesta música, em que fica de fora toda espécie de exibicionismo. Uma interpretação do Ciclo Oceânico exige, além da técnica, uma grande sensibilidade artística.

Desde sempre o mar inspira à criação artística, em parte pelo seu mistério, talvez por evocar outros mundos que já existiram (lembro aqui do mito de Atlântida) ou que talvez ainda existam. Esse mistério pode ser ouvido na música de Vichi. Se nela não ouvimos esses outros mundos, ouvimos a melancolia do anseio por eles. Sua escrita para piano parece, por vezes, nos contar um segredo íntimo que só a profundeza dos oceanos seria capaz de guardar. Música não é apenas técnica, é também transbordamento da alma, profunda como o mar, com suas tempestades, escuridões sob o céu estrelado e distâncias insondáveis. Nesta obra, Vichi evoca o mar ou, na verdade, evoca a alma? E se essa for uma falsa escolha, e, na música, o mar e a alma forem exatamente o mesmo? Somente cada um poderá dizer.

A viagem sonora pelas paisagens musicais, habilmente retratadas, não nega a viagem por um oceano interior e íntimo, tão poeticamente sugerida pela suíte no decorrer dos seus cinco movimentos. Neles, vivenciamos, através da música, a escuridão da noite pouco estrelada sobre o mar e na alvorada, o momento de ajustes das coordenadas para o início da viagem; a melancolia profunda das distâncias; a energia sombria de uma tempestade oceânica com ventos que trazem o inverno, personificado na mitológica figura de Bóreas; a beleza desolada das ruínas de um farol e a densidade dos sentimentos quando enfim avista-se as orlas marítimas do ponto de chegada dessa trajetória oceânica, — verdadeiros portais para os mundos que o oceano, interior ou exterior, encerra. Sobre o lirismo desse mar, evocado por Leonardo Vichi em seu Ciclo Oceânico, poderiam ser ditos os versos que iniciam a última estrofe do poema citado no início deste artigo:

“Ó mar! ó mar! embora esse eletrismo,
Tu tens em ti o gérmen do lirismo.”

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